
Vivi em ti.
Na tua pele. No teu coração. Para além dele.
Dei-te a mão quando precisavas.
Esperei-te, até tarde, enquanto não chegavas.
Tantas vezes fiquei de olhos cansados depois de chorar. Não era tristeza. Era a mágoa da certeza de saber que tudo tem de acabar.
Felizmente, choraste comigo. Pelo mesmo motivo.
A vida passou e o nosso tempo acabou. O teu relógio gastou-se primeiro.
Faltam poucos minutos para a hora certa. Aquela para além da qual o corpo já não desperta.
Ou talvez seja a hora errada. Aquela a partir da qual a vida fica parada.
Dei-te banho.
Envolvi-te na toalha e sequei-te o corpo que se arrepiava.
Passei-te o pente no cabelo molhado.
Vesti-te o fato do nosso casamento.
Foi como se regressássemos ao momento.
Lembro-me das tardes de Verão. Do ar quente de cada serão.
Do cão do vizinho que não se calava.
Do cheiro das árvores depois de uma breve trovoada.
As noites em que ficávamos abraçados, embalados na rede da varanda, à espera de ver chover uma chuva quente.
O teu cabelo ainda era negro como a vista de um cego.
Agora perdeu a cor. Ficou cinza. Ganhou valor.
Os sinais do tempo valem pela vida vivida. E nós vivemos.
Agora, olhamos um para o outro e sabemos o que temos.
Olhas-me com um adeus no rosto.
Tu sabes.
Eu sei.
Está na hora.
É agora.
É a tristeza do sol-posto.
É o consentimento no teu rosto.
Abri a lâmina.
Fiz-te a barba.
Morres velho mas bonito.
Bonito para mim.
Sabes que sim.
Gostei de te ver sorrir quando te mostrei a tua cara ao espelho.
Não tem mal nenhum ser velho.
Mal é não te deixarem morrer quando o corpo se avariou e já não te deixa saber o que é viver.
Pressionei dois dedos contra o teu pulso.
Ainda te sentia o correr das veias.
Era uma vida que não podia ser interrompida por decretos e leis de vontades que nos eram alheias.
Essas pessoas não sabem nada de nós. Eu é que estou casada. Eu é que sei o quanto me custa encarar esse teu olhar que me quer falar mas que não me diz nada.
E, a ti, ainda te custa mais. Estás aí, preso nesse corpo, sabendo que não sairás mais.
Estás perdido para mim. E ambos prometemos, um ao outro, que nenhum de nós viveria assim.
Ofereci-te esta lâmina.
Com ela, veio o raspar da pele, o sangrar do corte. Mas eram sempre golpes pouco profundos. Sempre agradeci essa sorte.
Agora, o último corte será profundo de morte.
Dou-te um beijo na boca e deixo-te ir.
Agradeço a transparência debilitada da tua pele.
As veias são fáceis de encontrar.
É o nosso desejo e não fugiremos dele.
Corto-te os pulsos para te libertar.
Na tua pele. No teu coração. Para além dele.
Dei-te a mão quando precisavas.
Esperei-te, até tarde, enquanto não chegavas.
Tantas vezes fiquei de olhos cansados depois de chorar. Não era tristeza. Era a mágoa da certeza de saber que tudo tem de acabar.
Felizmente, choraste comigo. Pelo mesmo motivo.
A vida passou e o nosso tempo acabou. O teu relógio gastou-se primeiro.
Faltam poucos minutos para a hora certa. Aquela para além da qual o corpo já não desperta.
Ou talvez seja a hora errada. Aquela a partir da qual a vida fica parada.
Dei-te banho.
Envolvi-te na toalha e sequei-te o corpo que se arrepiava.
Passei-te o pente no cabelo molhado.
Vesti-te o fato do nosso casamento.
Foi como se regressássemos ao momento.
Lembro-me das tardes de Verão. Do ar quente de cada serão.
Do cão do vizinho que não se calava.
Do cheiro das árvores depois de uma breve trovoada.
As noites em que ficávamos abraçados, embalados na rede da varanda, à espera de ver chover uma chuva quente.
O teu cabelo ainda era negro como a vista de um cego.
Agora perdeu a cor. Ficou cinza. Ganhou valor.
Os sinais do tempo valem pela vida vivida. E nós vivemos.
Agora, olhamos um para o outro e sabemos o que temos.
Olhas-me com um adeus no rosto.
Tu sabes.
Eu sei.
Está na hora.
É agora.
É a tristeza do sol-posto.
É o consentimento no teu rosto.
Abri a lâmina.
Fiz-te a barba.
Morres velho mas bonito.
Bonito para mim.
Sabes que sim.
Gostei de te ver sorrir quando te mostrei a tua cara ao espelho.
Não tem mal nenhum ser velho.
Mal é não te deixarem morrer quando o corpo se avariou e já não te deixa saber o que é viver.
Pressionei dois dedos contra o teu pulso.
Ainda te sentia o correr das veias.
Era uma vida que não podia ser interrompida por decretos e leis de vontades que nos eram alheias.
Essas pessoas não sabem nada de nós. Eu é que estou casada. Eu é que sei o quanto me custa encarar esse teu olhar que me quer falar mas que não me diz nada.
E, a ti, ainda te custa mais. Estás aí, preso nesse corpo, sabendo que não sairás mais.
Estás perdido para mim. E ambos prometemos, um ao outro, que nenhum de nós viveria assim.
Ofereci-te esta lâmina.
Com ela, veio o raspar da pele, o sangrar do corte. Mas eram sempre golpes pouco profundos. Sempre agradeci essa sorte.
Agora, o último corte será profundo de morte.
Dou-te um beijo na boca e deixo-te ir.
Agradeço a transparência debilitada da tua pele.
As veias são fáceis de encontrar.
É o nosso desejo e não fugiremos dele.
Corto-te os pulsos para te libertar.
8 comentários:
Cumplicidade, partilha, comunhão. Apenas.
"Apenas"? (dito assim, parece coisa pouca)
É suposto ninguém te dizer novidades.
Mas como eu me estou nas tintas para isso ;) digo-te:
Texto BRILHANTE! Um autêntico filme!
Donos do destino, diria eu.
Amei!!!! :)
É uma questão de leitura. No "apenas" pode caber uma vida. Apenas!
Lindo texto.FORTE.
Mas dolorido.
De certa forma que nem eu mesma sei explicar, doeu em mim.
Um abraço!
Fada, um filme, ainda vá. Mas... "donos do destino"? (acho que andas a ler muito Nicholas Sparks). :D
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TERESA, só estava a ver como te defendias. O próprio Universo, em toda a sua imensidão, é apenas o Universo. ;)
--
Sil, o texto é um dos muitos episódios da vida.
E o mundo agradece o teu abraço (que ele precisa). :)
"as veias são fáceis de encontrar", assim haja amor suficiente para as...cortar
Haja. :)
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